Meio Ambiente

‘A grande crise não é ecológica, é política’

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Discurso de Pepe Mujica na Rio 20 pode servir como mensagem ao Fórum Econômico de Davos deste ano. Lago coberto de algas a poucos metros da captação de água do Guandu pela Cedae
Reprodução/TV Globo
O problema da poluição na água do Rio de Janeiro continua, e nossa única esperança, como moradores, é torcer muito para que dê certo o tal procedimento que vai acrescentar carvão ativado à já extensa quantidade de produtos químicos usada para tratar o líquido imundo, proveniente de rios imundos, que deságua no Guandu. Estou de dedos cruzados.
Enquanto isso, mais uma vez a atual administração federal decide fazer polêmica e distrai a população. O secretário nacional de Cultura fez um discurso semelhante ao ministro da propaganda nazista para divulgar o Prêmio Nacional das Artes. E eu fico pensando quantas vezes já se criticaram os ambientalistas por trazerem à mesa de debates visões de pessoas que espraiaram ideias de desenvolvimento julgadas retrógradas porque falam em diminuir produção e consumo para buscar qualidade de vida.
Senhor secretário, a erosão da solidariedade internacional, base de nossa atual governança, é o tema que vai circular nas mesas de debate durante a reunião dos ricos e poderosos do mundo a partir de terça-feira (21), num resort na gelada cidade de Davos, na Suíça, na 50ª edição do Fórum Econômico Mundial. Tem tudo a ver com arte… de viver. É tempo, portanto, de falar e pensar em solidariedade, e isto não combina com a visão de pessoas que exterminaram, com maldade e frieza, milhares de outras. Vamos, sim, buscar na história exemplos que possam nos ajudar a desanuviar o ambiente e trazer saúde num tempo de tantos desafios políticos e climáticos.
18 de junho – Motoristas observam enquanto um urso-polar atravessa uma rodovia perto de Norilsk, na Rússia. A aparição do animal selvagem a centenas de quilômetros de distância de seu habitat natural chamou atenção para a deterioração do extremo norte em consequência das mudanças climáticas e do degelo
Irina Yarinskaya /Zapolyarnaya pravda via AFP
Sendo assim, deixo para trás o imbróglio iniciado nos corredores do poder federal e ouso fazer uma pequena contribuição aos que já estão fazendo as malas para embarcar até os Alpes. Participei, como jornalista, fazendo a cobertura da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio 20, que aconteceu em 2012 no Rio de Janeiro. Era também uma reunião de líderes mundiais, como a que vai começar na terça-feira. A proposta era, igualmente, de avançar sobre ideias de desenvolvimento. E ainda hoje me lembro que o discurso do então presidente do Uruguai Pepe Mujica foi dos mais aplaudidos e emocionantes. Então, como agora, oito anos depois, a palavra solidariedade ressoou em alto e bom som. E comoveu.
“É possível falar em ser solidário e dizer que estamos todos juntos, numa economia baseada na competição desproposital? Até onde chega a nossa fraternidade?”, disse Mujica.
O agricultor Mujica, que também foi senador em seu país, atraiu a atenção da plateia fazendo perguntas simples, mas categóricas e necessárias para que tais reuniões, tanto as convocadas pela ONU quanto o Fórum Econômico que começará daqui a três dias, não se tornem retóricas inúteis.
“O mundo poderia hoje fornecer aos sete bilhões de habitantes o mesmo nível de consumo e esbanjamento que as sociedades mais ricas? Ou será que temos que começar um outro tipo de debate um dia?… Estamos governando a globalização ou a globalização nos governa?”, pergunta Mujica.
O discurso de Mujica é de uma singeleza que chega a nos deixar perplexos diante do óbvio que vive nos escapando.
“Não viemos ao planeta para nos desenvolver indefinidamente. Viemos à vida para ser feliz. Porque a vida é curta, escorrega pelos dedos, e não há objeto que valha tanto quanto a vida, isto é fundamental… Venho de um pequeno país com bens naturais suficientes para viver. Meu país tem três milhões de habitantes. Mas há 13 milhões de vacas e oito milhões de estupendas ovelhas. Meu país é exportador de comida, de carne. É uma planície, quase 90% de sua terra são férteis. Meus colegas de trabalho lutaram arduamente para a jornada de trabalho de oito horas, mas agora estão conseguindo baixar para seis horas. Mas a pessoa que vai trabalhar seis horas vai buscar ter dois empregos, então ela vai trabalhar mais do que antes. Por quê? Porque tem que pagar boletos, do carro que comprou, da moto que comprou. Quando acordar, será um velho, reumáticos como eu. E a pergunta é: é este o destino da vida humana?”
O ex-presidente uruguaio José Mujica, eleito para o Senado do país em 2019.
Eitan Abramovich / AFP
O discurso tem dez minutos de duração, e quem quiser ter o prazer de ouvi-lo na íntegra pode acessar aqui. Mujica reconhece que, por mais que esteja falando coisas tão claramente triviais, é difícil digerir suas palavras. Mas sempre alerta sobre a necessidade incontestável de ter tais elementos na base de debates mundiais.
“A crise da água, a agressão ao meio ambiente, não são uma causa. A causa é o modelo de civilização que nós criamos. E a única coisa que temos de reexaminar é o nosso modo de vida… Não estou falando para voltar aos dias do homem das cavernas ou de erigir um monumento ao atraso. Mas não podemos continuar assim, indefinidamente, sendo governados pelo mercado. Temos que dominar o mercado… a grande crise não é ecológica, é política”, disse Mujica.
Oito anos depois, cá estamos, no início da segunda década do século 21, e finalmente o relatório de riscos globais que vai basear as conversas dos ricos e poderosos em Davos, este ano, traz a questão ambiental como prioridade. No primeiro ponto do relatório, que se refere aos eventos extremos, como inundações e secas, a questão principal a ser debatida é o fracasso (sim, esta é a palavra!) de governos e mercados se adaptarem adequadamente às mudanças climáticas.
Leio isto enquanto bebo água mineral comprada no supermercado porque aqui, no Estado que é a segunda maior economia do país considerado a oitava economia do mundo, os governantes fracassaram até na mais simples das questões ambientais: a limpeza dos rios que fornecem água para ser tratada. Sei que não somos os únicos, mas esta é a realidade que me cerca, é dela que preciso dar conta.
Assim como estou de dedos cruzados à espera do milagroso carvão ativado que talvez melhore a qualidade da água da torneira, também me encho de esperança pelo resultado da reunião em Davos. Desejo profundamente que as palavras de Mujica, do Papa Francisco, de Vandana Shiva, de Amartya Sen e de tantos outros pensadores que realmente valem a pena serem ouvidos ressoem nas salas do resort suíço não como necessárias mas débeis, mas como prementes e indispensáveis.
Mujica terminou seu discurso da Rio 20 dizendo que o desenvolvimento não pode ir contra a felicidade humana. E deu mais uma sugestão que envelopo e envio para a Suíça, com taxa de urgência:
“Quando lutamos pelo meio ambiente, o primeiro elemento do meio ambiente se chama a felicidade humana. Justamente porque este é o tesouro mais precioso que temos”.
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