Saída de Roberto Azevêdo aumenta incerteza em meio à recessão decorrente da covid-19 e guerra comercial entre americanos e chineses. A saída do brasileiro Roberto Azevêdo do cargo de diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), anunciada nessa quinta-feira (14/5), ocorre após diversas investidas dos Estados Unidos contra o órgão comercial da Organização das Nações Unidas (ONU) e traz incertezas à economia mundial, em meio à epidemia de covid-19.
Pega no fogo cruzado da disputa entre a China e Estados Unidos, a OMC vem sofrendo com bloqueios de nomeações e ameaças de corte de verbas e abandono por parte de Washington. A saída de Azevêdo ocorrerá após longa campanha de esvaziamento de poder.
“Independentemente de quão engrandecedores esses últimos sete anos tenham sido para mim, agora devo terminar este ciclo. Quando os membros começarem a moldar a agenda da OMC para as novas realidades pós-covid, deverão fazê-lo com um novo diretor-geral”, informou Azevêdo no comunicado de partida. Ele deixará o cargo em 31 de agosto.
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O diplomata de 62 anos afirmou que a sua saída foi anunciada antecipadamente, porque ele considera melhor fazer a transição o mais cedo possível, para que a busca de um substituto não se sobreponha à organização da próxima reunião ministerial, MC12, que deverá ocorrer no Cazaquistão em 2021, e que estabelecerá o futuro do comércio global no período pós-covid-19.
“Essas considerações sobre o tempo estavam em minha mente enquanto eu considerava minha decisão de renunciar. E concluo que quanto mais cedo eu permitir que vocês prossigam com o processo de seleção, será melhor”, afirmou em conferência virtual com os membros da organização.
Investidas
A partida de Azevêdo ocorre após contínuas investidas de Washington contra a OMC, o que começou ainda no governo de Barack Obama, mas tomou corpo e voz sob a administração de Donald Trump.
O propósito da OMS é servir de repositório das políticas comerciais dos membros, atuar como mediadora em negociações comerciais multilaterais e resolver disputas comerciais internacionais. Mas a organização não tem conseguido cumprir a sua missão em parte por causa de Washington.
Uma dessas funções-chave sofreu um grande golpe no ano passado, quando os EUA paralisaram efetivamente o sistema de solução de controvérsias da organização ao bloquear nomeações de juízes.
Washington impediu que novos juízes fossem empossados no painel de sete membros que recebe apelações. O tribunal, que operava quase como uma instância suprema para resoluções comerciais entre países, não tem podido emitir novas sentenças desde dezembro, porque não há membros ativos o suficiente.
“Os americanos consideram que esse órgão de apelação tem ido além dos limites e feito uma interpretação criativa da lei e isso é uma posição de Estado, não apenas de governo”, afirma o ex-ministro da Fazenda e diplomata Rubens Ricupero, que também atuou no GATT, acordo que precedeu a OMC, e foi secretário-geral da UNCTAD, a Conferência para Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas.
Ricupero se disse surpreso com a renúncia de Azevêdo e lamentou a saída do colega que sempre considerou “muito engajado”.
“Ele estava muito empenhado, ultimamente inclusive tinha tentado obter apoio para superar essa crise que afeta a organização. Mas a crise já existia, era crônica, vinha de muito tempo antes. Desde a Rodada Doha (negociações que tentaram, sem sucesso, acordos para reduzir o protecionismo), desde 2001”, avaliou.
Verbas e abandono
Além do bloqueio de nomeações, a ameaça de corte de verbas e abandono também pairava desde 2018 sobre a OMC. Naquele ano Trump já ameaçara retirar a participação americana da organização.
Recentemente ameaças semelhantes feitas a outra agência das Nações Unidas, a Organização Mundial de Saúde, foram cumpridas. Em abril o país bloqueou uma contribuição de US$ 400 milhões que faria ao órgão após acusar a OMS de ser simpática à China.
A administração Trump também acusa a OMC de ser complacente com o protecionismo chinês.
Washington afirma que Pequim não cumpriu a promessa de abraçar uma economia mais orientada para o mercado, limitando a penetração de produtos americanos no país. O compromisso de abertura constava nas condições para a adesão do país asiático à OMC em 2001.
A inabilidade da China em confinar a crise epidemiológica dentro das suas fronteiras deu a munição para que os conservadores americanos costurassem o tema da guerra comercial à crise da pandemia.
Na semana passada, o senador Josh Hawley, republicano do Missouri, disse em um artigo de opinião do New York Times que a OMC era obsoleta e deveria ser abolida para que os EUA pudessem combater melhor o “imperialismo” chinês. Ele também defende que a China seja responsabilizada pelas perdas econômicas decorrentes do distanciamento social em vigor atualmente.
Hawley organizou pedido de votação no Congresso para os EUA deixarem a OMC. Na sua página o senador publicou a seguinte declaração:
“A pandemia de coronavírus expôs profundas falhas de longo prazo em nosso sistema econômico global que exigem reformas. Organizações internacionais como a OMC permitiram a ascensão da China e beneficiaram elites em todo o mundo enquanto esvaziavam a indústria americana, desde pequenas cidades até prósperos centros urbanos. Precisamos devolver a produção para a América, garantir cadeias críticas de suprimentos e incentivar a inovação doméstica. Sair da OMC é um bom primeiro passo”.
Após a notícia da decisão de saída de Azevedo, Hawley tuitou: “apague as luzes quando sair”.
Cargo e crise
Azevêdo assumiu o posto de diretor-geral da OMC pela primeira vez em setembro de 2013 e foi reeleito em 2017. Ele deveria permanecer no cargo até 2021, mas agora será seu substituto quem enfrentará a calamidade econômica causada pela covid-19.
“Estabelecemos metas ambiciosas e transformadoras para o MC12 (reunião ministerial) e para a reforma da OMC. E agora devemos garantir que o comércio contribua para a recuperação econômica global da pandemia da covid-19. Mas eu não serei o líder com quem vocês traçarão e trilharão o caminho estratégico adiante”, disse Azevedo em sua carta de despedida.
Em uma previsão divulgada há duas semanas atrás pela OMC, Azevedo já alertara as nações para o impacto devastador da epidemia no comércio global.
“Em um cenário otimista, nossos economistas veem o volume do comércio global de bens cair em 13% em 2020. Caso a pandemia não seja controlada e os governos falhem em coordenar políticas de resposta, a queda poderá ser de 32% ou mais”, afirmara o diretor-geral em um vídeo.
Com a saída de Azevêdo face à hostilidade de Washington, a cooperação entre nações para mitigar globalmente o impacto econômico da covid-19 parece ainda vez mais frágil.
“É uma tendência que já começou em 2018. A desconstrução da globalização só foi acelerada pela pandemia de coronavírus”, avalia o professor e economista Arturo Bris, Diretor do Centro de Competitividade Global do IMD, instituto de formação executiva de Lausanne.
“Nos próximos meses e anos, os governos se tornarão ainda mais importantes do que nunca à medida em que as nações construirão barreiras físicas e mentais à globalização. Nesse contexto, o papel das organizações multilaterais (OMC, ONU, mas também a OMS e a OCDE) diminuirá”, prevê Bris.
“Isso é do interesse de potências globais como China e EUA, mas prejudicará economias emergentes como Brasil, África do Sul e muitos países do Sudeste Asiático. Essas economias dependem quase completamente do comércio global e uma reação contrária a isso aumentará os danos da pandemia em seus mercados domésticos”, diz.
Sucessão
A busca de um sucessor para Azevêdo deverá ser concorrida, principalmente porque desde que a OMC foi criada, em 1995, nem os Estados Unidos, nem a China emplacaram até hoje diretores.
É necessário que os 164 países-membros estejam de acordo com o nome do substituto para que a nomeação seja efetivada. Normalmente a negociação política e diplomática para esse tipo de cargo chega a levar nove meses. Mas a campanha poderá ser complicada pelo fato de ocorrer online, devido às restrições de contato social causadas pela pandemia.
Os vice-diretores que estão abaixo do Brasileiro são Yonov Frederick Agah, da Nigéria; Karl Brauner, da Alemanha; Alan Wolff, dos EUA; e Yi Xiaozhun, da China.
Segundo o canal de notícias financeiras Bloomberg, pelo menos dois candidatos já anunciaram sua intenção de concorrer ao cargo principal: o vice-diretor nigeriano Agah e o advogado egípcio Abdelhamid Mamdouh, que é ex-diretor da Divisão de Comércio de Serviços e Investimentos da OMC.
Crise antiga
Apesar de os conflitos comerciais instigados pelos Estados Unidos sob o presidente Donald Trump terem enfraquecido o sistema comercial mundial, a crise da instituição de Genebra já vinha se arrastando desde o começo do milênio, quando as negociações por maior liberalização do comércio, a Rodada Doha, fracassaram.
Após oito tentativas, as negociações afundaram em 2016. O principal ponto de discórdia foi a abertura dos mercados aos produtos agrícolas. As negociações permanecem bloqueadas porque é necessária uma aprovação por unanimidade.
“É uma crise que já vem de muito. Foi muito antes do Roberto Azevêdo. Vem de razões que têm a ver com a própria evolução do sistema internacional e da redução cada vez maior do apoio ao multilateralismo”, avalia Ricupero.
Em artigo publicado no New York Times na terça-feira, o representante comercial americano Robert Lighthizer disse que os EUA perderam pelo menos 2 milhões de empregos desde 2001. Ele não mencionou diretamente a OMC, mas seu texto foi entendido como uma crítica à organização.
Em janeiro, ainda havia esperança de que Trump e Azevêdo poderiam cooperar em nome da reforma da organização. Ambos concederam uma coletiva de imprensa improvisada no Fórum Econômico de Davos, Suíça, onde aparentaram colaborar entre si.
“Se levamos a sério a mudança e a atualização da OMC para torná-la mais sensível às mudanças do século 21, precisamos estar prontos para fazer coisas incomuns, importantes e talvez até dramáticas”, afirmara Azevêdo em janeiro.
Na mensagem de despedida nesta quinta, Azevêdo voltou a reforçar a mesma posição: “Uma reforma verdadeira e significativa é uma tarefa de longo prazo. Tivemos algum sucesso em começar a fazer as coisas de maneira diferente, mas levará tempo e comprometimento dos membros para seguir adiante. Embora eu esteja convencido de que seguimos na direção certa, o caminho a seguir exigirá escolhas consequentes e profunda reflexão”.
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