Do design à gastronomia, da moda ao audiovisual, da música ao artesanato, essa rede criativa não apenas gera renda como também redefine o consumo e a cidade.
O que têm em comum uma professora aposentada que costura bolsas com tecidos reaproveitados, um brechó plus size criado no Instagram, uma feira colaborativa na Torre de TV e aulas sobre criatividade e inovação em universidades de Brasília? A resposta está na força de um setor: a economia criativa.
Essa rede, movida por identidade e inovação, já emprega formalmente cerca de 130 mil pessoas no Distrito Federal e movimenta aproximadamente R$ 10 bilhões por ano — o equivalente a 3,5% do PIB local, de acordo com o Panorama da Economia Criativa, pesquisa da Universidade Católica de Brasília com apoio da FAP-DF. Na capital federal esse ecossistema tem se consolidado é onde cultura, tecnologia, empreendedorismo se cruzam para dar origem a produtos e serviços que carregam mais do que valor de mercado, carregam sentido. Do design à gastronomia, da moda ao audiovisual, da música ao artesanato, essa rede criativa não apenas gera renda como também redefine o consumo e a cidade.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o DF ocupa hoje o segundo lugar no ranking nacional de trabalhadores em ocupações criativas: 9,7% dos empregos formais estão nesse setor, número ligeiramente atrás de São Paulo (9,8%) e à frente de estados como Rio de Janeiro (9,3%) e Ceará (9,3%).
Grande parte dos empreendedores da economia criativa no Distrito Federal atua como Microempreendedor Individual (MEI), especialmente mulheres que encontraram nesse modelo uma forma de formalizar talentos, transformar hobbies em negócio e acessar políticas públicas de fomento. Segundo o Sebrae-DF, os MEIs representam uma parcela expressiva do setor, com forte presença nos segmentos de moda, artesanato, gastronomia e design.
A força da economia criativa
A força da economia criativa no Distrito Federal se materializa em histórias como a de Cleide de Fátima Moreira, de 62 anos. Professora aposentada e microempreendedora individual (MEI), ela encontrou na costura uma forma de expressão e uma alternativa de renda. Moradora do Alto Planalto Leste, Cleide confecciona bolsas artesanais e térmicas com materiais reaproveitados, como calças jeans antigas e tecidos de estofado. “Comecei para aliviar o estresse da sala de aula. Hoje, o artesanato complementa minha renda e ajuda minha família”, conta.
Cleide de Fátima, artesã de bolsas por materiais recicláveis. – Foto: Camila Coimbra
Com carteiras de artesã e manualista emitidas pela Secretaria de Turismo do DF, ela participa de feiras públicas e está sempre atenta aos projetos de fomento que apoiam a comercialização e a qualificação de artesãos, como cursos de capacitação do Sebrae-DF. Desde sua estreia em 2019 em uma feira no Jardim Botânico, Cleide passou a expor seus produtos nas feiras de artesanatos sazonais de Brasília, ou até em shoppings. Apesar dos avanços, Cleide ressalta que o Distrito Federal ainda carece de um centro comercial permanente voltado ao artesanato. “Outros estados têm feiras fixas, espaços dedicados. Brasília ainda não. E mesmo assim o artesanato movimenta bastante a economia local. Falta incentivo. É isso que permite que a gente cresça”, conclui.
Tradição na Feira da Torre de TV
Enquanto isso, Iracema Bezerra da Costa, de 62 anos, mantém há 40 anos o trabalho como artesã e microempreendedora. Para ela a economia criativa também é sustentada por saberes ancestrais, redes familiares e a força da cultura popular. São quatro décadas expondo na Feira da Torre de TV, onde comercializa arranjos feitos com flores secas do Cerrado — matéria-prima que coleta, limpa e transforma em peças decorativas. “A flor seca é leve, tem a cara da nossa terra. Aqui tudo é feito por nós: da coleta ao acabamento”, explica.
A atividade artesanal atravessa gerações. A filha, hoje responsável pelos crochês expostos na banca, aprendeu os pontos com Iracema e com a internet. A mãe, com 95 anos, ainda trabalha com as cestas de palha, o marido também artesão com às flores secas, e o filho mais velho, criado entre as bancas, também auxilia quando surgem encomendas maiores, “Toda minha família está envolvida com o artesanato, aqui é o trabalho de toda uma geração”, conta Iracema.
Apesar de ser um dos espaços mais emblemáticos da capital federal, a Feira da Torre vive hoje um esvaziamento preocupante. “Antes, meio-dia já não tinha mais mercadoria. Hoje, a gente fica aqui o dia inteiro e muitas vezes não vende. Falta divulgação, falta valorização. O artesanato daqui é original, tem história, mas as pessoas nem sabem que ainda existimos”, desabafa.
Para Iracema, a economia criativa precisa ser reconhecida não apenas como alternativa, mas como parte essencial da estrutura produtiva do DF. “O que fazemos aqui é cultura, é economia, é pertencimento. Mas precisamos ser vistos para continuar existindo.”
Criatividade como competência estratégica
A criatividade não é inspiração súbita ou “dom”, é prática, é repertório, é isso que o professor Paulo Almeida ensina em sala de aula. À frente das disciplinas de Criatividade, Empreendedorismo e Inovação na pós-graduação da Faculdade Senac-DF, e também como professor de Empreendedorismo em Comunicação na UnB, ele propõe desafios reais para seus alunos desenvolverem soluções inovadoras, onde algumas acabam ganhando vida própria no mercado.
“O objetivo é capacitar os alunos a transformar ideias em soluções que tenham impacto de verdade”, explica. Segundo Paulo, moda e artesanato estão entre os setores que mais mobilizam os estudantes, ao lado de design, audiovisual e comunicação. “A criatividade é um pilar do empreendedorismo. Sem ela, as organizações perdem a capacidade de se diferenciar e se adaptar. É preciso criar ambientes de liberdade e experimentação, onde o erro seja visto como parte do processo criativo.”
Moda além da dificuldade
Foi diante da dificuldade de encontrar roupas estilosas em tamanhos maiores — em um mercado de moda ainda excludente — que a criatividade comercial ganhou força. O brechó GGarimpei surgiu como uma resposta a esse cenário. Ao transformar o nicho da moda plus size em uma experiência personalizada, as fundadoras Bruna Brito, 40 anos, e Tutila Aragão, 45, mostram que é possível empreender com propósito, inovação e impacto social.
Bruna e Tutila, criadoras do GGarimpiei. – Foto: Camila Coimbra
Moradoras de Águas Claras e Asa Sul, o negócio nasceu em 2023 a partir de um desconforto compartilhado: a dificuldade de encontrar roupas estilosas em tamanhos maiores. A conexão entre Bruna e Tutila começou pelas redes sociais. Bruna, jornalista e consultora de imagem, vendia peças do próprio guarda-roupa no Instagram. Tutila, gerente de negócios e também consultora de estilo, era uma das compradoras mais frequentes — sem saber que as roupas que mais amava vinham justamente de Bruna. “Eu comprava roupas que amava e depois descobri que eram da Bruna”, relembra Tutila. “E as minhas peças favoritas também eram dela”, completa Bruna.
Com valores semelhantes e um olhar apurado para estilo e identidade, decidiram criar o GGarimpei: “Percebi que havia uma demanda reprimida. A galera estava sedenta por esse tipo de roupa”, conta Bruna. Atualmente, o negócio reúne mais de 55 fornecedoras, com peças higienizadas, em excelente estado e criteriosamente selecionadas pelas próprias sócias. A curadoria vai além da numeração: considera caimento, proporção, estilo e linguagem visual. “Nosso objetivo não é apenas vender roupa que caiba, mas oferecer peças que representem quem a pessoa é”, afirma Tutila. “Queremos que nossas clientes se sintam bonitas, visíveis e incluídas.”
Foto: Camila Coimbra
O diferencial do GGarimpei está tanto na moda circular quanto no cuidado com a experiência. As sócias pretendem incorporar pacotes acessíveis de consultoria de imagem ao negócio, com foco na autoestima e no acolhimento. “Queremos vestir às clientes com roupas incríveis, mas também com orientação e carinho”, explica Bruna. Para elas, moda é um ato político e sensível — um espaço de expressão. “Oferecemos brilho, estampa, transparência. Tudo que sempre disseram que não era permitido”, diz Tutila. Toda a operação é autônoma: atendimento, logística, curadoria, redes sociais e até os pequenos ajustes nas roupas são feitas por elas mesmas, conciliando com seus empregos formais. “Brincamos que somos nossa própria estagiária e nossa própria chefe”, conta Bruna, rindo. Agora, o GGarimpei se prepara para inaugurar um espaço físico que funcione como loja, ambiente de encontros, oficinas e atendimento personalizado. “Queremos um lugar onde as pessoas se sintam em casa, sejam ouvidas e vistas”, conclui.
Olhar especializado
Com formação em Moda pela FMU e especialização em Mercado de Moda e Consumo pela Belas Artes, a designer Raquel Lucena tem acompanhado de perto as transformações do comportamento do consumidor e o avanço de modelos mais sustentáveis no setor. “Moda está dentro do grupo das criações funcionais, ao lado do design gráfico e de interiores. É o capital intelectual que gera valor econômico, simbólico e cultural”, analisa.
“Enquanto grandes redes seguem com produção em massa e denúncias de exploração, há um amadurecimento do público que busca pagar não só pelo produto, mas pelo valor que ele carrega — seja na história, na estética ou na ética”, afirma. Ela aponta que o pós-pandemia acentuou esse movimento: “As pessoas estão exaustas do excesso. Querem consumir com mais consciência, qualidade e vínculo afetivo”.
Nesse novo cenário, os brechós ganham protagonismo como espaços de reeducação do consumo e resistência cultural. Raquel destaca que muitos desses empreendimentos têm curadorias sérias, com foco em qualidade, memória e reaproveitamento — pilares da economia circular. “O brechó não é só economia. Ele representa durabilidade, afeto e identidade. É uma resposta concreta à lógica descartável da moda”, pontua. Ela vai além: “É possível que, com os materiais sintéticos usados hoje, nem tenhamos mais peças dos anos 2020 aptas a virar acervo vintage. O fast fashion gera lixo. O brechó, memória”.
Projetos como o GGarimpei, brechó brasiliense focado em moda plus size, são, segundo Raquel, exemplos bem-sucedidos de inovação com impacto social. “As fundadoras criaram uma solução a partir de uma dor comum. Isso é economia criativa na essência: identificar demandas invisibilizadas, criar propósito e gerar valor com identidade.” Para ela, os brechós segmentados — voltados a nichos como moda agênero, estética alternativa ou recortes regionais — cumprem um papel de contratendência a um mercado padronizado. “Sem nicho, não há identidade. E sem identidade, é difícil criar comunidade e fidelizar.”
Sebrae: talento como estratégia de futuro
Segundo o Sebrae-DF, a economia criativa no DF se destaca pela diversidade e pelo protagonismo feminino. Muitos empreendedores são MEIs, atuam com negócios sustentáveis e enxergam valor na economia circular. “No DF, a produção criativa tem impacto social real. Ela promove inclusão, renda e reforça a identidade local”, afirma a instituição, que oferece oficinas, consultorias, rodadas de negócios e capacitações específicas para segmentos como moda, gastronomia, audiovisual, design e artesanato.
Programas como o Vestir Brasília, lançado em 2024, oferecem planejamento estratégico e apoio a marcas da moda local. O Sebrae também acompanha a profissionalização de brechós, como o Ao Desapego, no Conic, que vêm ganhando força como espaços de consumo consciente. “O brechó não é apenas um bazar — é um espaço de peças com valor simbólico, sustentável e identitário.”
Além disso, a sustentabilidade se tornou um valor central dentro da economia criativa. Muitos negócios utilizam matérias-primas reaproveitadas, adotam processos de baixo impacto ambiental e atuam em redes colaborativas. Ao valorizar saberes tradicionais e produção local, a economia criativa do DF caminha para um modelo mais ético, conectado e resiliente
Loja colaborativa para artesãs
A Feira da Torre de TV inaugurou no dia 14 de junho a primeira Loja Colaborativa Cerrado Feminino para artesãs — iniciativa que une empreendedorismo feminino, inclusão produtiva e identidade cultural. O espaço, localizado nos boxes 95 e 96 da feira, está dedicado à exposição e vendas dos produtos produzidos pelas 20 artesãs selecionadas nesta primeira etapa. Esse projeto é fruto de um acordo entre a Secretaria da Mulher do DF (SMDF), o Sebrae-DF e o Instituto BRB, e tem como foco mulheres artesãs e também aquelas em situação de vulnerabilidade social.
Mais do que um ponto de venda, a loja é parte de uma política pública articulada no âmbito do II Plano Distrital de Políticas para as Mulheres (II PDPM), com o objetivo de promover autonomia econômica, capacitação e fortalecimento da economia criativa no DF — setor que já é o segundo maior do Brasil e tem forte protagonismo feminino.
“A mulher é muito criativa por natureza, mas faltava curadoria e profissionalização para que nossas artesãs pudessem vender com segurança e dignidade”, destaca a secretária de Estado da Mulher, Giselle Ferreira. A seleção das próximas expositoras está prevista para chegar a 30 mulheres na etapa seguinte, vai seguir um sistema rotativo a cada dois meses. “Muitas diziam: ‘Eu sei fazer, mas não sei vender. Eu sei fazer, mas não tenho onde vender’. Agora elas têm esse espaço”, completa.
Além da estrutura física revitalizada — com nova marcenaria, iluminação e ambientação —, as artesãs contam com apoio técnico e consultorias. O Instituto BRB é responsável pela estruturação dos boxes e coordenação técnica do projeto, enquanto o Sebrae-DF atua na trilha formativa com foco em precificação, redes sociais, design de produto e posicionamento no mercado. “Queremos entregar para Brasília um produto de qualidade e dar mais visibilidade aos nossos talentos”, afirma a superintendente do Sebrae-DF, Rose Rainha.
Para Rose, a economia criativa no DF se destaca pela diversidade cultural, refletida nos produtos locais. “Temos influências do Norte, do Sul, do Centro-Oeste, isso torna nosso artesanato único. E essa loja é mais uma entrega de reconhecimento e valorização desse trabalho feito, em grande parte, por mulheres”, diz.
Moradora do Gama, a artesã Sabrina Rocha, de 30 anos, é uma das expositoras da primeira turma da Cerrado Feminino. Ela trabalha com amigurumi, técnica japonesa que cria objetos tridimensionais com linha e agulha. “Vim de um lar de mulheres artesãs, mas só me encontrei nessa arte durante a pandemia. Cada peça é única e feita com muito afeto”, conta.
Sabrina passou pelo processo de curadoria conduzido pelo Sebrae e integrou as formações oferecidas. Para ela, a loja é símbolo de reconhecimento e valorização. “É um espaço que mostra que o artesanato de Brasília está vivo. Nós temos talento e agora temos onde mostrar isso”, afirma. Segundo a artesã, o projeto oferece muito mais do que um local de vendas: “Nos ajudaram a entender o nosso nicho, a precificar, a cuidar do acabamento, da embalagem e até da identidade visual. Isso é o que a gente precisava.”
Com o lema “Feito por elas. Fortalecido por todos”, o Cerrado Feminino nasce como uma vitrine permanente para o talento, a resiliência e a força criativa das mulheres do DF. Mais que um espaço de compra, é um ponto de conexão com histórias, afetos e sonhos transformados em renda e valorização social.
Texto retirado: https://jornaldebrasilia.com.br/estilo-de-vida/moda-beleza/moda-cultura-e-inovacao-a-forca-da-economia-criativa-brasiliense/
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