Dubai, hoje sinônimo de luxo, modernidade e ousadia arquitetônica, esconde uma história marcada por miséria, fome e desafios extremos. Há menos de um século, seus habitantes enfrentavam condições tão adversas que chegavam a se alimentar de gafanhotos e lagartos para sobreviver. Como, então, essa pequena vila de pescadores no Golfo Pérsico se transformou em uma das cidades mais influentes e vistosas do planeta?
A resposta passa por uma combinação de visão estratégica, adaptação diante das adversidades e, em alguns momentos, ousadia sem escrúpulos.
Da crise à fome
A quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, abalou o comércio global de artigos de luxo — entre eles, as pérolas, base da economia de Dubai na época. A falência do setor mergulhou o emirado em uma crise profunda. A situação se agravou com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, que atingiu as importações de alimentos e isolou ainda mais a cidade, então sob domínio britânico.
Negócios faliram, estrangeiros deixaram o território e a fome se instalou. A década de 1930 marcou um dos períodos mais sombrios da história local. Estudiosos apontam que o nome “Dubai” pode vir do verbo árabe que significa “rastejar”, talvez uma metáfora para o ritmo lento de seu desenvolvimento naquela época.
O passado da “Costa dos Piratas”
O sudoeste da Península Arábica abriga povos nômades há cerca de 2,7 mil anos. Os pequenos reinos litorâneos, como Dubai, sempre tiveram conexões comerciais com regiões distantes, incluindo a Índia, o Paquistão e a China. Os europeus, ao chegarem no século 16, passaram a chamar a região de “Costa dos Piratas” — um termo hoje considerado exagerado e propagandístico, usado pelos britânicos para justificar suas intervenções militares.
Mais tarde, os britânicos substituíram esse nome por “Estados da Trégua”, estabelecendo acordos de proteção com os xeques locais e afastando a influência do decadente Império Otomano e da emergente dinastia Saudita.
No entanto, a exploração de pérolas era real. No início do século 20, cerca de 95% da economia do Golfo girava em torno delas. Dubai, sozinho, concentrava um quarto das embarcações dedicadas à atividade. Mas a descoberta japonesa do cultivo de pérolas, no mesmo período da crise de 1929, selou o fim do setor artesanal da região.
Anos de miséria e a independência
Sem as pérolas e sem o apoio real do Reino Unido, Dubai enfrentou quase duas décadas de pobreza extrema. Os britânicos pouco investiram na infraestrutura local, mantendo os emirados como protetorados com pouca autonomia e sem grandes avanços sociais ou econômicos.
Em 1971, os britânicos deixaram a região, e sete emirados — incluindo Dubai — uniram-se para formar os Emirados Árabes Unidos (EAU). À época, a nação recém-criada era uma das mais pobres do planeta, com altíssimos índices de analfabetismo e expectativa de vida de apenas 50 anos.
Pouco petróleo, muita estratégia
Ao contrário de Abu Dhabi, Dubai tinha reservas modestas de petróleo. Mesmo assim, o xeque Rashid bin Saeed al Maktoum adotou uma estratégia ousada: investir em infraestrutura para transformar o emirado em um centro logístico e comercial.
Sem recursos próprios, Rashid conseguiu apoio financeiro de mercadores locais e um empréstimo do Kuwait. Construiu o Porto Rashid e, mesmo sem o aval britânico, criou o Aeroporto Internacional de Dubai, inaugurado em 1960 com um “empurrão” diplomático inusitado: um Rolex de presente a um administrador britânico.
Em 1966, finalmente, o petróleo foi encontrado em Dubai. Mas o xeque não se acomodou. Investiu os lucros na modernização do emirado e na diversificação da economia. Nos anos 1980, metade do PIB ainda vinha do petróleo. Hoje, essa dependência caiu para menos de 1%.
Contrabando, escravidão moderna e polêmicas
A história de Dubai também tem lados obscuros. A cidade já foi rota importante no tráfico de haxixe, ópio e ouro. A escravidão, abolida oficialmente em 1963, ainda persiste em formato moderno, segundo a ONG Walk Free. O sistema de kafala, que vincula trabalhadores imigrantes aos seus empregadores, é frequentemente denunciado por violações de direitos humanos.
Durante a construção do Burj Khalifa — o edifício mais alto do mundo —, diversos trabalhadores enfrentaram jornadas abusivas e falta de liberdade. Um deles se suicidou em 2011, impedido de retornar a seu país natal, segundo a Human Rights Watch.
Ainda assim, a mesma Walk Free reconhece que os Emirados Árabes Unidos estão entre os países da região que mais avançaram no combate à escravidão moderna.
Turismo e megalomania
Com a economia diversificada, Dubai viu sua população saltar de 40 mil habitantes em 1960 para 3,6 milhões atualmente. O Aeroporto Internacional de Dubai é hoje o mais movimentado do mundo em passageiros internacionais — foram 92 milhões em 2024.
A cidade já declarou seu objetivo de ser o destino turístico mais visitado do planeta. Em 2024, atraiu 18,2 milhões de visitantes estrangeiros e ficou em sétimo lugar no ranking global, bem à frente do Brasil inteiro.
Além do Burj Khalifa, Dubai abriga a maior fonte pública do mundo, o maior shopping center, o maior aquário de shopping, a piscina mais profunda e a piscina de borda infinita mais alta do planeta.
Uma cidade nascida do impossível
A ascensão de Dubai é, ao mesmo tempo, deslumbrante e controversa. É o retrato de uma cidade que usou o pouco que tinha — e, em muitos momentos, o que não tinha — para se reinventar e desafiar as probabilidades.
Hoje símbolo do luxo e da inovação tecnológica, Dubai é também um lembrete de que, por trás de cada arranha-céu de vidro e aço, existe uma história marcada por resistência, artimanhas políticas e escolhas difíceis.
O emirado pode ter conquistado os céus com seus superlativos, mas sua história continua a exigir um olhar atento — e os pés bem firmes no chão.
Voz de Brasilia
Fonte: bbc
Foto: foto da web
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