Economia

Área econômica estuda limitar dívida após 2026 a fim de manter contas públicas sob controle

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Atualmente, principal ‘âncora’ para governo buscar equilíbrio das contas é a regra do teto de gastos. Pelo estudo, seria criado um limitador da dívida, e teto se tornaria um mecanismo auxiliar. A equipe econômica do governo já realiza estudos para que, depois de 2026, a dívida pública se torne a principal “âncora” de manutenção do controle das contas públicas em lugar do teto de gastos, segundo apurou o G1.
O teto de gastos é a regra criada em 2016 (com validade de 2017 em diante) que limitou o crescimento da despesa pública. Pela norma — cuja validade é de 20 anos e com possibilidade de revisão a partir do décimo ano —, a maior parte das despesas da União (Executivo, Legislativo e Judiciário e seus órgãos) só pode crescer, no máximo, até o percentual da inflação do ano anterior.
A adoção de uma “segunda geração de regras fiscais” teria por objetivo promover um processo de ajuste de médio e longo prazo, em todos os níveis de governo, a fim de manter a dívida pública em “patamares sustentáveis”.
Neste ano, com a necessidade de gastos adicionais para enfrentar a crise do novo coronavírus e com o impacto da recessão nas receitas, a dívida brasileira, segundo o Tesouro Nacional, pode chegar perto de 100% do PIB, muito acima da média dos países emergentes antes da crise (pouco mais de 50% do PIB).
Paulo Guedes fala da importância do respeito ao teto de gastos
Na configuração em estudo, o teto de gastos e as metas de resultado primário (diferença entre receitas e despesas, sem contar juros) passariam a cumprir, após 2026, “o papel de regras operacionais” para controle da dívida. A chamada “regra de ouro” (que impede o governo de contrair dívida para pagar despesas correntes dos ministérios) perderia a validade.
José Roberto Afonso, um dos criadores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), observou que essa legislação já exige que cada governo fixe metas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para a dívida, que pode ser no conceito do endividamento bruto também. Entretanto, esses limites para a dívida ainda não foram regulamentados.
“À parte o debate do teto, precisamos aprovar os limites legais para dívidas da União (em lei, para mobiliária, no Senado, para consolidada). Caminho ideal é fixar, implementar e acompanhar primeiro a meta para a dívida federal. Depois, estimular demais governos a fazerem o mesmo. E só assim se poderá ter uma meta para a dívida bruta”, afirmou ele.
Atualmente, o teto de gastos é o principal mecanismo de ajuste das contas públicas, chamado de “âncora fiscal”. Mas, segundo analistas do setor privado e integrantes da área econômica, se não forem realizadas reformas auxiliares, os serviços públicos poderão sofrer restrições já a partir de 2021.
“O piso [que são as despesas obrigatórias, em alta] vai empurrando o governo contra o teto. As reformas são as paredes para travar o piso. Se o teto não cai por falta de reformas, que são as paredes, à medida que as [despesas] obrigatórias vão subindo, vão comprimindo o governo contra o teto”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, na semana passada.
Entre as reformas auxiliares consideradas pelo governo e parlamentares, estão:
a permissão de acionamento dos chamados “gatilhos” (que impedem aumento de gastos com servidores)
a redução de jornada e salário de funcionários públicos
a desindexação da economia, que pode envolver o congelamento de benefícios previdenciários e o fim dos pisos (gastos mínimos) em saúde e educação.
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Limite para a dívida
De acordo com integrantes do governo, a substituição do teto de gastos por um limite para a dívida pública como principal “âncora” para as contas públicas no futuro passaria pela aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) do Pacto Federativo, relatada pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC). E, depois, pela aprovação de uma lei complementar sobre o assunto.
Isso porque dispositivo proposto pelo governo, que deverá constar no pacto federativo, abrirá possibilidade de que uma lei complementar possa definir “indicadores e níveis sustentáveis de endividamento e a trajetória de convergência da dívida a estes limites, com o estabelecimento de resultado fiscal e crescimento da despesa compatível com esta trajetória”.
A discussão sobre os termos desse projeto de lei complementar, porém, ainda não chegou ao ministro Paulo Guedes — a PEC do Pacto Federativo teria de ser aprovada antes.
O G1 procurou o senador Marcio Bittar, relator da PEC do Pacto Federativo, mas não conseguiu entrevista e nem comentários por meio de sua assessoria de imprensa.
Segundo interlocutores do Ministério da Economia, “alguns dos fundamentos da reorganização das regras para as contas públicas” a serem propostos por meio dessa lei complementar estão baseados em estudo das equipes técnicas publicado no site da pasta, com o título “Regras Fiscais: uma proposta de arcabouço sistêmico para o caso brasileiro”.
Esse estudo define que a dívida bruta, uma das principais formas de comparação internacional, passe a ser a principal “âncora fiscal de longo prazo” — substituindo o teto de gastos, a “regra de ouro” e a meta fiscal (de déficit primário) — a fim de reduzir o endividamento no médio prazo.
Segundo o documento, as regras de resultado primário [meta fiscal anual] e teto de gastos “cumpririam o papel de regras operacionais, comunicando a trajetória fiscal ao público e indicando o caminho para trazer a dívida pública ao patamar desejado no médio prazo”.
Pela proposta, a regra de ouro, que impede o governo de se endividar para pagar despesas correntes dos ministérios, perderia a validade.
Segundo o estudo, a regra de ouro tem sido abandonada no arcabouço de regras fiscais em diversos países, como Inglaterra e Alemanha, e “mesmo naqueles países que ainda a adotam, sua aplicação tem sido pouco efetiva”.
“O arcabouço [atual] brasileiro é composto por regras cujos objetivos não estão necessariamente interligados, e que em cenários específicos podem ser conflitantes”, diz o estudo.
Pelo documento, o objetivo de médio e longo prazos seria reduzir e manter a dívida bruta abaixo de 60% do PIB no futuro.
Atualmente, o governo brasileiro apenas estima o patamar da dívida bruta para os próximos anos — considerando a limitação das despesas pelo teto de gastos, assim como previsões para indicadores como o crescimento do PIB, a taxa básica de juros e o nível do dólar, entre outros.
“A fixação de limites para a dívida é uma regra adotada internacionalmente e de fácil compreensão. A regra possui potencial de funcionar como âncora de longo prazo, orientando a condução da política fiscal e as demais regras fiscais”, diz o estudo.
No documento, a área técnica do Tesouro Nacional avalia que, tendo em vista a “necessidade de continuidade do processo de consolidação fiscal e as atuais dificuldades associadas a um arcabouço pouco eficiente para esse objetivo, entende-se premente [urgente] e indispensável a alteração nas regras fiscais brasileiras”.
Leonardo Ribeiro, analista do Senado Federal, diz que o governo aponta corretamente para a direção de uma meta para a dívida na PEC do Pacto Federativo.
“No entanto, não aproveita o desenho institucional já previsto no artigo 52 da Constituição Federal e na Lei de Responsabilidade Fiscal, o que pode deixar o texto constitucional e todo nosso arranjo institucional incoerentes”, acrescentou.
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Ajuste fiscal mais amplo
A eventual troca do teto de gastos por um limite para a dívida bruta, depois de 2026, permitiria novos mecanismos de ajuste nas contas públicas, ampliando o campo de atuação do governo.
Pelas regras atuais do teto de gastos, se a economia voltar a crescer e a receita melhorar, novos gastos para os serviços públicos não podem ser liberados, pois as despesas estão travadas no limite do teto.
Com a eventual instituição da meta para a dívida bruta no futuro, o governo poderia atuar em outros campos, se beneficiando, por exemplo, de uma melhora na arrecadação federal e, também, das receitas de privatização.
De acordo com integrantes da equipe econômica, o projeto de lei para regulamentar uma nova regra fiscal, com base em um limite para a dívida pública, “pode incluir incentivos para a alienação [venda] de ativos [como empresas públicas]”.
Segundo interlocutores do Ministério da Economia, a privatização para a redução da dívida “se torna ainda mais natural quando se considera que a forte expansão de dívida prevista para este ano [devido à pandemia] pode ser considerada atípica e limitada no tempo”.
Atualmente, as regras do teto concentram os ajustes na contenção das despesas primárias (aquelas que não são financeiras), afetando gastos em saúde, que deixou de receber R$ 9 bilhões em 2019; educação, que pode gerar problemas na realização do Enem em 2021; e outras despesas dos ministérios.
Bolsas de estudo do CNPq e Capes, fiscalizações do trabalho escravo e do meio ambiente, além do programa Farmácia Popular e da emissão de passaportes, também são tradicionalmente afetados pelo crescimento das despesas obrigatórias em um ambiente de manutenção da regra do teto de gastos.
A rigidez do teto de gastos também tem gerado dificuldades para o governo implementar um novo programa social, que vinha sendo chamado internamente de “Renda Brasil”.
Isso porque outras despesas teriam de ser canceladas para abrir espaço no teto para esse programa, e há resistências por parte do presidente Bolsonaro em cancelar programas e gastos sociais.
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Avaliação de economistas
Para Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, é preciso ter claro que há um problema de “curtíssimo prazo a ser resolvido” — o alto risco de rompimento do teto de gastos em 2021.
“A curva de juros [aumento dos juros futuros] já está precificando o risco de abandono do teto ou mesmo de mudanças precipitadas. O essencial, agora, é viabilizar o acionamento dos gatilhos, conforme previstos na Emenda Constitucional 95 [do teto de gastos]”, avaliou.
Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) e ex-secretário de Política Econômica do extinto Ministério da Fazenda, observou em artigo que, para viabilizar o teto, o governo terá de aprovar medidas adicionais “ainda mais duras do que o próprio teto”, como acionamento dos gatilhos e corte de jornada e salário de servidores, entre outras.
Falando em tese, pois a eventual proposta do governo ainda não foi divulgada, ele avaliou que mecanismos associados ao controle da dívida pública também podem trazer problemas ao limitar, potencialmente, a atuação do Banco Central na política monetária (operações compromissadas), na calibragem dos depósitos compulsórios (recursos dos bancos que têm de ser mantidos fora do mercado) e na política cambial.
Em artigo, José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), e Leonardo Ribeiro, analista do Senado Federal, observaram que os “poucos países” que usam um teto para controlar o crescimento da despesa combinam esse mecanismo com uma regra de dívida – que é a “mais predominante no mundo”, apoiada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Para eles, seria importante dar maior atenção aos chamados “spending reviews”, prática conhecida como revisão sistemática do gasto público (seja ele obrigatório ou livre, com o objetivo de controlar o seu montante ou encontrar espaço fiscal para a “repriorização” de despesas, envolvendo inclusive a análise de benefícios fiscais, ou seja, das renúncias de receita).
Segundo Leonardo Ribeiro, as regras para controle da dívida e a sistemática de revisão de gastos são instrumentos de política fiscal para ampliar a transparência, para melhorar o controle do gasto e a qualidade dos serviços prestados à população. “O ‘shutdown’ [paralisia de serviços públicos] no Brasil seria uma decisão unicamente política”, afirmou.
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